sábado, 8 de agosto de 2020

OS PILOTOS QUE CONTINUAM A VOAR NESSA ÉPOCA DE ISOLAMENTO

 

GETTY IMAGES

É verdade que voar é igual andar de bicicleta: quem aprende, dificilmente esquece.

Mas também é verdade que o ‘feeling’ do voo costuma ficar prejudicado depois de muito tempo sem voar.

Atualmente, estamos em uma situação em que todas as empresas aéreas estão com atividades muito reduzidas, os voos escassearam, e uma multidão de pilotos está parada.

Por outro lado, uma parte dos pilotos continua voando periodicamente, mesmo que com uma frequência muito menor do que gostariam.

Quem são esses que, mesmo com todo esse caos, continuam com possibilidade de praticar o voo, independentemente de estarem na escala diária das grandes linhas aéreas?

São aqueles que, além de pilotarem comercialmente, também participam da aviação leve e desportiva – ramo da aviação que certas autoridades da ANAC vem pisoteando e sufocando sistematicamente há alguns anos.

Na hora de voltar para a cabine dos aviões comerciais, esse grupo de pilotos provavelmente tem vantagens em relação àqueles que dependem unicamente da escala para voar.

Afinal, quem tem à sua disposição um avião experimental, ultraleve, planador, acrobático ou clássico, pode envolver a cabeça e o corpo na atividade real do voo, mesmo em contexto de quarentena.

Só isso já é um motivo suficiente para as autoridades entenderem que aviação leve e desportiva não é a escória da aviação, mas é a base dela.

A ANAC deveria repensar seriamente a forma com que trata esse ramo da aviação, que é um refúgio e hobby de muitos pilotos profissionais, e que indiretamente beneficia a própria segurança dos passageiros que eles transportam nos grandes aviões. Porque esses pilotos não param de praticar o voo, mesmo quando não estão trabalhando.

Creditos : aeromagia

Conto de Jorge Medauar

 

Maçonaria na Literatura: “Maçonaria”, conto de Jorge Medauar

 

imagem da internet


” Diziam que lá dentro havia uma mesa grande, coberta de pano preto, com um caixão de defunto em cima. Espadas cruzadas nas paredes, caveiras. As cortinas das portas e janelas eram roxas. Também havia um bode solto, de cavanhaque pontudo, que rondava pela casa: era o diabo disfarçado de bode. De noite, corujas ficavam empoleiradas pelos vãos do telhado. Pelo lado de dentro, os morcegos voavam cegos, para chupar o sangue do morto estendido em cima da mesa. Uma casa misteriosa, mal-assombrada. Só entravam ali homens que tinham costeletas compridas, sobrancelhas grossas, olhos brilhantes. Corcundas, velhos de capote preto. Os meninos passavam longe, tinham medo de se aproximar até mesmo do muro.

Do lado de fora eram vistas as manchas das paredes, os rombos no reboco. Por cima dos muros caminhavam trepadeiras bravas, plantas com espinhos. Havia até, para o fundo do quintal, uma cacimba abandonada, com matos fechando a boca. O mamoeiro-macho nunca dera fruto. No tempo de laranja, fazia gosto ver as laranjeiras carregadas, as laranjas maduras cobrindo os ramos. Mas quem tinha coragem de colher uma? As pessoas que moravam por perto afirmavam que nunca viram nenhum passarinho bicando uma fruta daquele quintal. A casa era mesmo de fantasmas.

Em noites fechadas, de sem lua, ouviam gemidos vindos de dentro, subindo da cacimba. Os gatos arrepiavam os pêlos, disparavam na carreira. Cachorro gania, latia para o vento, arreganhava a dentuça, como se estivesse vendo visagem. Diz que no fundo da cacimba afogaram um homem. E que de noite sua alma subia, rondava por dentro do muro, querendo sair. O cadeado da corrente do portão vivia fechado. Só em noites de reunião é que abriam as portas, acendiam as velas socadas nos castiçais. Os homens vestiam capas, arrodeavam a mesa com o caixão de defunto, falavam baixo.

Um dia, os meninos resolveram pular o muro, arrombar a porta do fundo, entrar pela casa adentro. Era preciso muita coragem. Antes de entrar, amarraram apostas para ver quem ia na frente. Com pouco, todo mundo se sentiu corajoso. Todo mundo quis ir. O trabalho maior era escolher as pessoas. Edson era o chefe. Debaixo de suas ordens, os meninos faziam tudo.

Quando Lourdes quis entrar no grupo, Edson afastou-a:

– Menina não entra em negócio de homem não.

– Mas eu vou, nem que você queira nem que você não queira. A Maçonaria não é sua. É mais minha do que sua. Meu pai era de lá.

Depois que informara, Lourdes passou a ser vista com mais respeito. Queriam que ela perguntasse ao pai como era, como não era. Se tinha mesmo diabo disfarçado em bode, que palavras mágicas precisariam dizer para espantar os mistérios.

Lourdes inchava, se metia no meio dos meninos. Cada vez que vinha, para discutir planos, trazia uma nova informação: o pai dissera que era preciso repetir três palavras na hora de entrar. Para afastar o bode, era preciso tirar da parede uma espada, riscar o chão, esconjurar o pai de chiqueiro. O bode daria uns pinotes, bufaria, fungaria pelo chão até desaparecer. Na hora de desaparecer e virar diabo, estourava uma nuvem de enxofre, envolvendo o demônio, para que ninguém o pudesse ver

Os meninos arregalavam os olhos, ficavam ouvindo as palavras de Lourdes.

– Tu falou mesmo com seu pai? – perguntavam.

– Falei, sim. Ele me disse mais: que tem um porão por debaixo do soalho. Lá no fundo tá cheio de caveira, queixada de burro, sapo-boi, cobra venenosa.

Enquanto Lourdes ia trazendo informações, os meninos iam adiando o assalto. Edson às vezes duvidava, dizia que negócio com menina no meio não dava certo. E, se uma alma pegasse Lourdes pela saia? Homem não tinha saia, era mais fácil pular muro, sair correndo desembaraçado na hora da precisão. Uma vez – contou – sua irmã foi com ele para um assalto nas goiabeiras do lado de lá do rio. O homem das goiabas viu de longe os meninos empoleirados nos galhos, colhendo feito macaco. Panhou sua espingarda, encheu até à boca de sal, andou por detrás dos matos. Quando chegou bem de junto, cascou fogo. Todo mundo desceu com a bunda ardendo, danou-se na carreira desembestada pelo meio dos carrapichos, dos espinhos, dos galhos de ponta. No meio da carreira, a irmã ficara embaraçada no arame da cerca, pedindo pelo amor de Deus que a acudissem. O homem da goiabeira apanhou-a. E foi assim que ficou sabendo quem era o cabeça da traquinagem. O banzé, na hora que chegara em casa, foi maior do que o fim do mundo. Por isso não queria nenhuma menina no meio, no dia que fosse à Maçonaria.

Cada um já tinha sua arma: Zebinho arranjara um facão Jacaré, novinho em folha, tirado da loja do pai. O filho do gringo tinha um canivete Corneta, dos grandes, de duas folhas. Miguel tinha um bodoque construído com elástico de roda de automóvel. Edson, que era o chefe, tinha um punhal de ponta, com lâmina de palmo e meio. E Lourdes? – Cadê sua arma? – perguntava Edson.

Lourdes abaixava a cabeça, se sentia reduzida. Mas depois criava coragem, enfrentava os meninos. Dizia:

– Apois vou na frente, abrindo caminho, sem arma na mão. Não tenho medo de coisa nenhuma: vocês todos têm. Ninguém aí é mais homem do que eu não, ouviu?

Aí os meninos caíam na pagodeira. Quá, quá, quá. Oxente! Era só o que faltava, uma menina querer ser mais homem do que eles! Ai, meu Deus! Se pudessem, iam mostrar uma coisa a Lourdes. Não mostravam porque não podiam. Tome – empinavam a banana.

– Vá pra sua casa, menina. Não seja tola – pedia o chefe.

Edson outra vez tomava as rédeas do grupo, conduzia os meninos para onde bem quisesse. Mas Lourdes voltava de novo. Sabia onde se reuniam, por mais que vivessem trocando de lugar. Chegava, entrava no meio do grupo, ia dizendo coisas que seu pai contara. Os meninos arregalavam os olhos, ouviam em silêncio

Um dia, Edson decidiu reunir o pessoal no outro lado do rio. Combinaram tudo, chegaram na hora marcada. Lourdes nunca que haveria de descobrir o ponto. Ali poderiam discutir o plano todo, organizar os que iriam na frente, abrindo caminho, e os que iriam atrás, fazendo a cobertura. Alguém teria que ficar no muro, vigiando de cima. Um na porta da frente, um de junto da cacimba, os outros por dentro, vasculhando a casa.

Estavam assim, por debaixo do cacaueiro, quando ouviram barulho de passos pelas folhas do chão. Edson arrepiou os cabelos, os outros ficaram de orelha em pé. Zebinho fez “psiu“, com o dedo na boca. Escutaram o silêncio, os ouvidos apurados, esperando. Os passos aquietaram nas folhas secas. Que seria, que não seria?

– Só se for a doida da Lourdes – disse Miguel em voz baixa, já com seu bodoque preparado para o que desse e viesse.

Com pouco mais, perceberam que os passos continuavam. Agora se aproximavam. Todos prepararam as armas.

Zebinho foi o primeiro a gaguejar. Depois, o próprio Edson quis falar, a palavra embolou, não saiu: ninguém ficou sabendo a ordem que queria dar.

Quando os passos se aproximaram ainda mais, ouviram um fungar forte: um bode foi entrando por onde estavam, seguindo seu caminho pelo meio do cacaueiro. No que viram o bicho, danaram-se – cada um para um lado, pulando por dentro do rio.

Depois que o bode passou, um olhou para a cara do outro, pouco a pouco foram se agrupando de novo.

Estavam novamente no esconderijo, quando viram Lourdes: vinha chegando pelo mesmo caminho que trouxera o bode.

– Que foi, minha gente? – perguntou.

– A gente viu um bode preto, de cavanhaque pontudo, no meio do cacaueiro – informou Edson. – Ficamos espiando de longe, vigiando e, na mesma hora, ninguém mais viu o bicho: sumiu feito fumaça.

Lourdes contou que uma vez seu pai dissera que o bode da Maçonaria costumava sair: era o Cão que vagava pelo mundo, atentando os outros. Se metia mesmo pelo meio do mato. Preferia o cacaueiro. Num lugar qualquer, que só ele sabia, arriava a pele no chão e corria o mundo com corpo de gente. Era encantado para o mal. Quando encontrava um tabaréu de alma fraca, parava, assuntava, conversava, pedia um pau de fósforo para acender o cigarro. Na hora que o homem dava o fósforo, o Cão desencantava, virava demônio mesmo e vupte! – fisgava o homem com o garfo de pontas. Um horror.

Fazia muito isso com meninos, oferecendo doces, bombom – coisas de dar água na boca. Só por via de um rosário bento o Cão estuporava. Quem não tivesse medalhinha de santo, rosário, bentinho, ai meu Deus! – nem queria pensar. Melhor era procurar o bode. Se tivesse sumido mesmo, conforme falaram, só podia ser o Cão – acentuou.

Todos obedeceram. Entraram pelo cacaueiro, bateram aquilo tudo, as armas preparadas. Se vissem o bicho, a fuzilaria ia ser pesada. Lourdes na frente, vasculhando o caminho. Cadê o bode? – cada um perguntava. Ninguém via nada, nem rastro. Foi aí que Lourdes falou:

– Vamos cercar ele na porta da Maçonaria.

– Vambora – responderam.

Lourdes sempre na frente, comandando o grupo. Quando passaram por sua casa, seu pai, que estava na porta chamou:

– Venha cá, sua moleca.

Os meninos foram atrás. Era sua companheira: não iam deixar que fosse só.

O velho estava com uma cara de fazer medo, revirando o charuto nos dentes arregaçados.

Lourdes ia murcha, arrastando os passos, de cabeça baixa. Não estava com nenhum pingo de medo do carão que o pai por certo lhe daria. Mas seguia pedindo a Deus que abrisse um buraco em sua frente, para nele se enterrar, sumir, antes que alguém perguntasse ao velho pelo bode, pelas palavras mágicas, pelas coisas misteriosas da Maçonaria.”