Maçonaria na Literatura:
“Maçonaria”, conto de Jorge Medauar
imagem da internet
” Diziam que lá dentro havia uma mesa grande, coberta de pano preto, com
um caixão de defunto em cima. Espadas cruzadas nas paredes, caveiras. As
cortinas das portas e janelas eram roxas. Também havia um bode solto, de
cavanhaque pontudo, que rondava pela casa: era o diabo disfarçado de bode. De
noite, corujas ficavam empoleiradas pelos vãos do telhado. Pelo lado de dentro,
os morcegos voavam cegos, para chupar o sangue do morto estendido em cima da
mesa. Uma casa misteriosa, mal-assombrada. Só entravam ali homens que tinham
costeletas compridas, sobrancelhas grossas, olhos brilhantes. Corcundas, velhos
de capote preto. Os meninos passavam longe, tinham medo de se aproximar até
mesmo do muro.
Do lado de fora
eram vistas as manchas das paredes, os rombos no reboco. Por cima dos muros
caminhavam trepadeiras bravas, plantas com espinhos. Havia até, para o fundo do
quintal, uma cacimba abandonada, com matos fechando a boca. O mamoeiro-macho
nunca dera fruto. No tempo de laranja, fazia gosto ver as laranjeiras
carregadas, as laranjas maduras cobrindo os ramos. Mas quem tinha coragem de
colher uma? As pessoas que moravam por perto afirmavam que nunca viram nenhum
passarinho bicando uma fruta daquele quintal. A casa era mesmo de fantasmas.
Em noites fechadas,
de sem lua, ouviam gemidos vindos de dentro, subindo da cacimba. Os gatos
arrepiavam os pêlos, disparavam na carreira. Cachorro gania, latia para o
vento, arreganhava a dentuça, como se estivesse vendo visagem. Diz que no fundo
da cacimba afogaram um homem. E que de noite sua alma subia, rondava por dentro
do muro, querendo sair. O cadeado da corrente do portão vivia fechado. Só em
noites de reunião é que abriam as portas, acendiam as velas socadas nos
castiçais. Os homens vestiam capas, arrodeavam a mesa com o caixão de defunto,
falavam baixo.
Um dia, os meninos
resolveram pular o muro, arrombar a porta do fundo, entrar pela casa adentro.
Era preciso muita coragem. Antes de entrar, amarraram apostas para ver quem ia
na frente. Com pouco, todo mundo se sentiu corajoso. Todo mundo quis ir. O
trabalho maior era escolher as pessoas. Edson era o chefe. Debaixo de suas
ordens, os meninos faziam tudo.
Quando Lourdes quis
entrar no grupo, Edson afastou-a:
– Menina
não entra em negócio de homem não.
– Mas eu
vou, nem que você queira nem que você não queira. A Maçonaria não é sua. É mais
minha do que sua. Meu pai era de lá.
Depois que
informara, Lourdes passou a ser vista com mais respeito. Queriam que ela
perguntasse ao pai como era, como não era. Se tinha mesmo diabo disfarçado em
bode, que palavras mágicas precisariam dizer para espantar os mistérios.
Lourdes inchava, se
metia no meio dos meninos. Cada vez que vinha, para discutir planos, trazia uma
nova informação: o pai dissera que era preciso repetir três palavras na hora de
entrar. Para afastar o bode, era preciso tirar da parede uma espada, riscar o
chão, esconjurar o pai de chiqueiro. O bode daria uns pinotes, bufaria,
fungaria pelo chão até desaparecer. Na hora de desaparecer e virar diabo,
estourava uma nuvem de enxofre, envolvendo o demônio, para que ninguém o
pudesse ver
Os meninos
arregalavam os olhos, ficavam ouvindo as palavras de Lourdes.
– Tu falou
mesmo com seu pai? – perguntavam.
– Falei,
sim. Ele me disse mais: que tem um porão por debaixo do soalho. Lá no fundo tá
cheio de caveira, queixada de burro, sapo-boi, cobra venenosa.
Enquanto Lourdes ia
trazendo informações, os meninos iam adiando o assalto. Edson às vezes
duvidava, dizia que negócio com menina no meio não dava certo. E, se uma alma
pegasse Lourdes pela saia? Homem não tinha saia, era mais fácil pular muro,
sair correndo desembaraçado na hora da precisão. Uma vez – contou – sua irmã
foi com ele para um assalto nas goiabeiras do lado de lá do rio. O homem das
goiabas viu de longe os meninos empoleirados nos galhos, colhendo feito macaco.
Panhou sua espingarda, encheu até à boca de sal, andou por detrás dos matos.
Quando chegou bem de junto, cascou fogo. Todo mundo desceu com a bunda ardendo,
danou-se na carreira desembestada pelo meio dos carrapichos, dos espinhos, dos
galhos de ponta. No meio da carreira, a irmã ficara embaraçada no arame da
cerca, pedindo pelo amor de Deus que a acudissem. O homem da goiabeira
apanhou-a. E foi assim que ficou sabendo quem era o cabeça da traquinagem. O
banzé, na hora que chegara em casa, foi maior do que o fim do mundo. Por isso
não queria nenhuma menina no meio, no dia que fosse à Maçonaria.
Cada um já tinha
sua arma: Zebinho arranjara um facão Jacaré, novinho em folha, tirado da loja
do pai. O filho do gringo tinha um canivete Corneta, dos grandes, de duas
folhas. Miguel tinha um bodoque construído com elástico de roda de automóvel.
Edson, que era o chefe, tinha um punhal de ponta, com lâmina de palmo e meio. E
Lourdes? – Cadê sua arma? – perguntava Edson.
Lourdes abaixava a
cabeça, se sentia reduzida. Mas depois criava coragem, enfrentava os meninos.
Dizia:
– Apois vou
na frente, abrindo caminho, sem arma na mão. Não tenho medo de coisa nenhuma:
vocês todos têm. Ninguém aí é mais homem do que eu não, ouviu?
Aí os meninos caíam
na pagodeira. Quá, quá, quá. Oxente! Era só o que faltava, uma menina querer
ser mais homem do que eles! Ai, meu Deus! Se pudessem, iam mostrar uma coisa a
Lourdes. Não mostravam porque não podiam. Tome – empinavam a banana.
– Vá pra
sua casa, menina. Não seja tola – pedia o chefe.
Edson outra vez
tomava as rédeas do grupo, conduzia os meninos para onde bem quisesse. Mas
Lourdes voltava de novo. Sabia onde se reuniam, por mais que vivessem trocando
de lugar. Chegava, entrava no meio do grupo, ia dizendo coisas que seu pai
contara. Os meninos arregalavam os olhos, ouviam em silêncio
Um dia, Edson
decidiu reunir o pessoal no outro lado do rio. Combinaram tudo, chegaram na
hora marcada. Lourdes nunca que haveria de descobrir o ponto. Ali poderiam
discutir o plano todo, organizar os que iriam na frente, abrindo caminho, e os
que iriam atrás, fazendo a cobertura. Alguém teria que ficar no muro, vigiando
de cima. Um na porta da frente, um de junto da cacimba, os outros por dentro,
vasculhando a casa.
Estavam assim, por
debaixo do cacaueiro, quando ouviram barulho de passos pelas folhas do chão.
Edson arrepiou os cabelos, os outros ficaram de orelha em pé. Zebinho fez “psiu“,
com o dedo na boca. Escutaram o silêncio, os ouvidos apurados, esperando. Os
passos aquietaram nas folhas secas. Que seria, que não seria?
– Só se for
a doida da Lourdes – disse Miguel em voz baixa, já com seu bodoque
preparado para o que desse e viesse.
Com pouco mais,
perceberam que os passos continuavam. Agora se aproximavam. Todos prepararam as
armas.
Zebinho foi o
primeiro a gaguejar. Depois, o próprio Edson quis falar, a palavra embolou, não
saiu: ninguém ficou sabendo a ordem que queria dar.
Quando os passos se
aproximaram ainda mais, ouviram um fungar forte: um bode foi entrando por onde
estavam, seguindo seu caminho pelo meio do cacaueiro. No que viram o bicho,
danaram-se – cada um para um lado, pulando por dentro do rio.
Depois que o bode
passou, um olhou para a cara do outro, pouco a pouco foram se agrupando de
novo.
Estavam novamente
no esconderijo, quando viram Lourdes: vinha chegando pelo mesmo caminho que
trouxera o bode.
– Que foi,
minha gente? – perguntou.
– A gente
viu um bode preto, de cavanhaque pontudo, no meio do cacaueiro –
informou Edson. – Ficamos espiando de longe, vigiando e, na mesma hora,
ninguém mais viu o bicho: sumiu feito fumaça.
Lourdes contou que
uma vez seu pai dissera que o bode da Maçonaria costumava sair: era o Cão que
vagava pelo mundo, atentando os outros. Se metia mesmo pelo meio do mato.
Preferia o cacaueiro. Num lugar qualquer, que só ele sabia, arriava a pele no
chão e corria o mundo com corpo de gente. Era encantado para o mal. Quando
encontrava um tabaréu de alma fraca, parava, assuntava, conversava, pedia um
pau de fósforo para acender o cigarro. Na hora que o homem dava o fósforo, o
Cão desencantava, virava demônio mesmo e vupte! – fisgava o homem com o garfo
de pontas. Um horror.
Fazia muito isso
com meninos, oferecendo doces, bombom – coisas de dar água na boca. Só por via
de um rosário bento o Cão estuporava. Quem não tivesse medalhinha de santo,
rosário, bentinho, ai meu Deus! – nem queria pensar. Melhor era procurar o
bode. Se tivesse sumido mesmo, conforme falaram, só podia ser o Cão – acentuou.
Todos obedeceram.
Entraram pelo cacaueiro, bateram aquilo tudo, as armas preparadas. Se vissem o
bicho, a fuzilaria ia ser pesada. Lourdes na frente, vasculhando o caminho.
Cadê o bode? – cada um perguntava. Ninguém via nada, nem rastro. Foi aí que
Lourdes falou:
– Vamos
cercar ele na porta da Maçonaria.
– Vambora –
responderam.
Lourdes sempre na
frente, comandando o grupo. Quando passaram por sua casa, seu pai, que estava
na porta chamou:
– Venha cá,
sua moleca.
Os meninos foram
atrás. Era sua companheira: não iam deixar que fosse só.
O velho estava com
uma cara de fazer medo, revirando o charuto nos dentes arregaçados.
Lourdes ia murcha,
arrastando os passos, de cabeça baixa. Não estava com nenhum pingo de medo do
carão que o pai por certo lhe daria. Mas seguia pedindo a Deus que abrisse um
buraco em sua frente, para nele se enterrar, sumir, antes que alguém
perguntasse ao velho pelo bode, pelas palavras mágicas, pelas coisas
misteriosas da Maçonaria.”