Os filósofos gnósticos.
A Gnose é uma corrente de pensamento mistíco-religiosa que floresceu nos primeiros anos do Cristianismo e teve o seu apogeu nos séculos II e III da nossa era. Seus integrantes, na maioria constituída por pensadores cristãos, tinham como objetivo integrar as grandes tradições religiosas dos povos antigos com as novas ideias trazidas pelo Cristianismo.
Grande parte da literatura religiosa cristã foi produzida pelos filósofos gnósticos. Embora a Igreja Católica tivesse expurgado o Novo Testamento das ideias que guardavam alguma relação com antigos cultos pagãos, práticas mágicas e outras tradições esotéricas que não estivessem muito de acordo com os cânones adotados pelo catecismo católico, a doutrina cristã não conseguiu escapar da influência gnóstica e uma grande parte da crença dos cristãos, ainda hoje, é oriunda dos temas desenvolvidos per eles.
Nem os evangelhos canônicos estão livres da influência gnóstica. O Evangelho de São João, principalmente, é francamente inspirado naquela escola, bem como o livro do Apocalipse e a maioria das concepções do Apóstolo Paulo.
Durante os séculos II,III,IV essa escola de pensamento foi dominante no Império Romano. Mas já no início do século V, após a vitória da igreja de Roma, os gnósticos se refugiaram em círculos muito restritos, principalmente em razão da perseguição que lhes moveu o clero e as autoridades seculares. Da clandestinidade a que foram relegados derivaram as chamadas heresias, pois as ideias contrárias ás doutrinas professadas pela Igreja, que antes eram discutidas á luz do debate meramente filosófico, passaram a ser consideradas como perigosas para a ordem pública.
OS MANIQUEÍSTAS
A Gnose, entretanto, influenciou alguns dos maiores pensadores da Igreja. Um de seus ramos, o maniqueísmo, doutrina fundada por Mani, nascido na Babilônia em 216 a. D., teve como discípulo nada menos que o célebre Santo Agostinho, grande filósofo e bispo de Hipona.
Mani era um sacerdote Mazdeísta, ou Mitraísta, que seguia os ensinamentos de Zoroastro, ou Zaratustra, base da religião mais professada no Império Romano na época, o Mitraísmo. Ele reformou a doutrina de Zoroastro e incorporou nela alguns princípios e ideias desenvolvidas pelos gnósticos cristãos, e com isso fundou a doutrina conhecida como Maniqueísmo, a qual exerceu larga influência no pensamento religioso nos primeiros séculos do Cristianismo.
Os maniqueístas, diferentemente dos demais gnósticos, que admitiam três princípios atuantes na criação do cosmo, acreditavam que esses princípios eram apenas dois: a Luz e as Trevas. Do eterno embate entre o principio luminoso (o Pai da Luz), e o principio das trevas (O Rei das Trevas), surgiu tudo que existe no mundo. Essa concepção já havia sido desenvolvida por Zoroastro, no século VII a C., com a ideia de que o mundo era gerado por dois deuses, Ormuz, o deus da luz, e Arimã, o deus das trevas.
O “rei das trevas”, segundo os maniqueus, já foi um dia habitante do “país da luz”, mas dele partiu, com um inumerável séquito, após desentender-se com o “Pai da Luz”. Essa ideia reflete a tradição, também encapada pela Bíblia, da Rebelião de Lúcifer.
Na luta que então se travou pela posse do universo, o “Pai da Luz” foi ajudado pelo Homem Primordial, ou seja, o protótipo celestial do homem, que vivia no céu antes de vir para a terra, concepção essa desenvolvida pela Cabala. Derrotado pelos partidários das trevas, o Homem Primordial foi por eles devorado, ou seja, encerrado no seio da matéria. Para salvá-lo, o “Pai da Luz” evocou uma nova força, o “Espírito Vivo”, ou seja, o Espírito Santo, o qual deveria encarnar na terra uma dia, para libertá-lo.
Essa guerra teria acontecido no céu antes do surgimento da espécie humana. Quando o Homem Primordial foi afinal liberado das trevas, uma réstea da sua luz ficou presa nela. Com ela o ‘Rei das Trevas”, derrotado na guerra anterior, engendrou o casal humano, Adão e Eva, no qual encerraram a réstea de luz do Homem Primordial. Assim, de acordo com os maniqueístas, a atual humanidade não é uma criação de Deus, o pai da luz, mas sim de Lúcifer, o pai das trevas.
Mas será essa réstea de luz, no entanto, que permitirá, quando liberada, a volta do homem ao seio do “Pai da Luz”. Isso porque, essa réstea de luz, essa centelha, que é a sua alma, é o seu único elo com a divindade. Todo o resto, no homem, é matéria, são trevas. Daí porque a vida do homem, e toda a sua longa história de sucessivas mortes e reencarnações, se constituir numa “jornada em busca dessa luz”, ou seja, uma eterna luta para libertar essa luz que nele habita e constitui o único elo entre ele e o Criador. Essa ideia incorpora, como se vê, antigas tradições vedantas (a doutrina do Karma) e cabalísticas (o processo do Gilgou),que fundamentam a doutrina da reencarnação.
A influência dos essênios
O maniqueísmo não é, como geralmente se pensa, uma doutrina baseada na luta entre o bem e o mal. Pelo fato de considerar o mundo material, e o próprio ser humano como produto do deus das trevas, todo o universo maniqueísta é mau. Somente através de uma “iniciação”, na qual os iniciados possam expulsar de si as trevas da qual são feitos e isolar a “ réstea” de luz, (único elemento divino que há dentro dele), pode o homem pensar em salvação. Essas concepções já eram adotadas pelos essênios em suas doutrinas da salvação e guarda estrita relação com a tradição iluminista dos hindus e dos espiritistas cristãos, para os quais o homem precisa "libertar-se" do seu invólucro carnal para tornar-se espirito de luz.
Não só na semelhança de ideias e uso comum de símbolos os maniqueístas se assemelhavam aos essênios. A austeridade de conduta, a vida monacal, o ascetismo, a necessidade de iniciação nos “mistérios” da seita, o desapego pelos bens materiais, a vida em irmandade, etc. fazem desses “Filhos da Luz”, os herdeiros das tradições inauguradas por aqueles antigos “eleitos de Israel”.
A Igreja de Roma, depois do Concílio de Nicéia e da elevação do seu conceito de Cristianismo à religião oficial do Império Romano, baniu as demais doutrinas para a clandestinidade e passou a perseguir e encarcerar seus praticantes. Os maniqueístas não escaparam a esse destino. Seus templos foram destruídos, seus livros queimados e seus praticantes torturados e mortos. Mas sua influência se fez sentir em várias seitas que causaram muita preocupação na Igreja durante toda a Idade Média. Podemos citar, entre outras, os bogomilos, os paulicianos, e principalmente os cátaros, que, entre os séculos XII e XIV formaram importantes grupos em vários locais da Europa.
OOS CÁTAROS
Os Cátaros floresceram em regiões da França e Alemanha no início do século IX. Em fins do século XIII haviam se tornado tão influentes, que a repressão movida contra eles pela Igreja de Roma tomou o aspecto de uma verdadeira guerra religiosa.
Nessa época a região conhecida como Languedoc - sul da França- não fazia parte do território francês. Era um conjunto de principados independentes governados por nobres feudais, entre as quais as famílias de Toulouse e Trancavel. Incluía importantes cidades como Toulose, Montpellier, Avignon, Narbonne e Marselha. Possuía a cultura mais avançada da Europa medieval. Mantinha estreitas ligações com os árabes, e seus príncipes eram largamente tolerantes com judeus e mouros, cuja população era bastante representativa. A região do Languedoc constituía uma exceção numa Europa dominada pelo barbarismo e pelo obscurantismo religioso. Foi em Lunel e Narbonne, por exemplo, que se desenvolveram as escolas dedicadas ao estudo da Cabala. Lá, o Judaísmo, o Cristianismo e o Islamismo conviviam em paz, sendo mais objeto de estudo do que de disputas. Logo, a Igreja de Roma, com sua intolerância dogmática, não podia ser mesmo admirada na região. Por outro lado, a florescente economia do Languedoc, não raro, era objeto da cobiça dos potentados do norte da França, da Alemanha e da Espanha dominada pelos reis católicos.
Ademais, o Languedoc era o principal território dos heréticos cátaros, que desafiavam a autoridade da Igreja e professavam estranhas doutrinas que negavam a divindade de Cristo, a valor da Eucaristia, os poderes da cruz, a virgindade de Maria, a doutrina da Santíssima Trindade, o mistério da Ressurreição, etc. Por isso, entre 1219 e 1244 a região foi palco de um cruel genocídio perpetrado pela Igreja de Roma, mancomunada com os senhores feudais do norte. Um exército liderado pelo líder cruzado Simão de Montfort, durante três décadas varreu o território do Langedoc, chacinando a população, queimando castelos, destruindo cidades, “matando no próprio útero materno a heresia albigense”, como havia ordenado o Papa.
Pode-se dizer que a Cruzada Albigense foi o prenúncio das guerras religiosas que três séculos mais tarde iriam ensanguentar todo o território europeu. Ela foi uma guerra destinada a matar o espírito do homem. Mas embora o homem possa ser destruído e aprisionado, o seu espírito, que é livre, sobrevive, seja para o bem ou para o mal. Ideias devem ser combatidas com outras ideias, não com violência. Todo obscurantismo imposto pela tirania só mitiga o mal que quer destruir. Faz com que ele recrudesça, se recolha, para mais tarde retornar com mais vigor. Foi o que aconteceu na Europa, dois séculos mais tarde, com a Reforma Religiosa.
O legado dos Cátaros
Os cátaros legaram á Arte Real algumas inspirações litúrgicas. Seus sacerdotes eram considerados mestres perfeitos (parfaits), que conduziam suas assembléias á maneira das reuniões maçônicas das antigas lojas operativas. Sua postura anti-dogmática tem sido constantemente invocada como análoga áquela que existe na Maçonaria moderna. Eles são constantemente citados também como antecessores, ou inspiradores dos Templários em suas tradições místicas e religiosas.
Muito provavelmente, certas posições da Igreja Católica em relação aos maçons estão, de certa forma, ligadas á uma associação que alguns setores da Igreja fazem entre a Maçonaria e seitas heréticas como a dos cátaros e dos maniqueístas, sem falar da evidente ligação que a Arte Real mantém com a tradição templarista. Embora tudo isso, hoje não seja mais que uma curiosidade histórica, não falta quem invoque essas ligações para alimentar o ranço inquisitório que ainda sobrevive em alguns nichos fundamentalistas da Igreja de Roma. Felizmente vivemos hoje numa outra época, em que pensar e expressar nossos pensamentos não constitui crime. Quem sabe, nesta era de liberdade e busca da nossa “luz interior”, os gnósticos e os nossos antigos irmãos “parfaits” e seus discípulos, os cavaleiros templários, não encontrem afinal, a sua oportunidade de desforra.
DO LIVRO "CONHECENDO A ARTE REAL", ED. MADRAS, SÃO PAULO, 2007
A Gnose é uma corrente de pensamento mistíco-religiosa que floresceu nos primeiros anos do Cristianismo e teve o seu apogeu nos séculos II e III da nossa era. Seus integrantes, na maioria constituída por pensadores cristãos, tinham como objetivo integrar as grandes tradições religiosas dos povos antigos com as novas ideias trazidas pelo Cristianismo.
Grande parte da literatura religiosa cristã foi produzida pelos filósofos gnósticos. Embora a Igreja Católica tivesse expurgado o Novo Testamento das ideias que guardavam alguma relação com antigos cultos pagãos, práticas mágicas e outras tradições esotéricas que não estivessem muito de acordo com os cânones adotados pelo catecismo católico, a doutrina cristã não conseguiu escapar da influência gnóstica e uma grande parte da crença dos cristãos, ainda hoje, é oriunda dos temas desenvolvidos per eles.
Nem os evangelhos canônicos estão livres da influência gnóstica. O Evangelho de São João, principalmente, é francamente inspirado naquela escola, bem como o livro do Apocalipse e a maioria das concepções do Apóstolo Paulo.
Durante os séculos II,III,IV essa escola de pensamento foi dominante no Império Romano. Mas já no início do século V, após a vitória da igreja de Roma, os gnósticos se refugiaram em círculos muito restritos, principalmente em razão da perseguição que lhes moveu o clero e as autoridades seculares. Da clandestinidade a que foram relegados derivaram as chamadas heresias, pois as ideias contrárias ás doutrinas professadas pela Igreja, que antes eram discutidas á luz do debate meramente filosófico, passaram a ser consideradas como perigosas para a ordem pública.
OS MANIQUEÍSTAS
A Gnose, entretanto, influenciou alguns dos maiores pensadores da Igreja. Um de seus ramos, o maniqueísmo, doutrina fundada por Mani, nascido na Babilônia em 216 a. D., teve como discípulo nada menos que o célebre Santo Agostinho, grande filósofo e bispo de Hipona.
Mani era um sacerdote Mazdeísta, ou Mitraísta, que seguia os ensinamentos de Zoroastro, ou Zaratustra, base da religião mais professada no Império Romano na época, o Mitraísmo. Ele reformou a doutrina de Zoroastro e incorporou nela alguns princípios e ideias desenvolvidas pelos gnósticos cristãos, e com isso fundou a doutrina conhecida como Maniqueísmo, a qual exerceu larga influência no pensamento religioso nos primeiros séculos do Cristianismo.
Os maniqueístas, diferentemente dos demais gnósticos, que admitiam três princípios atuantes na criação do cosmo, acreditavam que esses princípios eram apenas dois: a Luz e as Trevas. Do eterno embate entre o principio luminoso (o Pai da Luz), e o principio das trevas (O Rei das Trevas), surgiu tudo que existe no mundo. Essa concepção já havia sido desenvolvida por Zoroastro, no século VII a C., com a ideia de que o mundo era gerado por dois deuses, Ormuz, o deus da luz, e Arimã, o deus das trevas.
O “rei das trevas”, segundo os maniqueus, já foi um dia habitante do “país da luz”, mas dele partiu, com um inumerável séquito, após desentender-se com o “Pai da Luz”. Essa ideia reflete a tradição, também encapada pela Bíblia, da Rebelião de Lúcifer.
Na luta que então se travou pela posse do universo, o “Pai da Luz” foi ajudado pelo Homem Primordial, ou seja, o protótipo celestial do homem, que vivia no céu antes de vir para a terra, concepção essa desenvolvida pela Cabala. Derrotado pelos partidários das trevas, o Homem Primordial foi por eles devorado, ou seja, encerrado no seio da matéria. Para salvá-lo, o “Pai da Luz” evocou uma nova força, o “Espírito Vivo”, ou seja, o Espírito Santo, o qual deveria encarnar na terra uma dia, para libertá-lo.
Essa guerra teria acontecido no céu antes do surgimento da espécie humana. Quando o Homem Primordial foi afinal liberado das trevas, uma réstea da sua luz ficou presa nela. Com ela o ‘Rei das Trevas”, derrotado na guerra anterior, engendrou o casal humano, Adão e Eva, no qual encerraram a réstea de luz do Homem Primordial. Assim, de acordo com os maniqueístas, a atual humanidade não é uma criação de Deus, o pai da luz, mas sim de Lúcifer, o pai das trevas.
Mas será essa réstea de luz, no entanto, que permitirá, quando liberada, a volta do homem ao seio do “Pai da Luz”. Isso porque, essa réstea de luz, essa centelha, que é a sua alma, é o seu único elo com a divindade. Todo o resto, no homem, é matéria, são trevas. Daí porque a vida do homem, e toda a sua longa história de sucessivas mortes e reencarnações, se constituir numa “jornada em busca dessa luz”, ou seja, uma eterna luta para libertar essa luz que nele habita e constitui o único elo entre ele e o Criador. Essa ideia incorpora, como se vê, antigas tradições vedantas (a doutrina do Karma) e cabalísticas (o processo do Gilgou),que fundamentam a doutrina da reencarnação.
A influência dos essênios
O maniqueísmo não é, como geralmente se pensa, uma doutrina baseada na luta entre o bem e o mal. Pelo fato de considerar o mundo material, e o próprio ser humano como produto do deus das trevas, todo o universo maniqueísta é mau. Somente através de uma “iniciação”, na qual os iniciados possam expulsar de si as trevas da qual são feitos e isolar a “ réstea” de luz, (único elemento divino que há dentro dele), pode o homem pensar em salvação. Essas concepções já eram adotadas pelos essênios em suas doutrinas da salvação e guarda estrita relação com a tradição iluminista dos hindus e dos espiritistas cristãos, para os quais o homem precisa "libertar-se" do seu invólucro carnal para tornar-se espirito de luz.
Não só na semelhança de ideias e uso comum de símbolos os maniqueístas se assemelhavam aos essênios. A austeridade de conduta, a vida monacal, o ascetismo, a necessidade de iniciação nos “mistérios” da seita, o desapego pelos bens materiais, a vida em irmandade, etc. fazem desses “Filhos da Luz”, os herdeiros das tradições inauguradas por aqueles antigos “eleitos de Israel”.
A Igreja de Roma, depois do Concílio de Nicéia e da elevação do seu conceito de Cristianismo à religião oficial do Império Romano, baniu as demais doutrinas para a clandestinidade e passou a perseguir e encarcerar seus praticantes. Os maniqueístas não escaparam a esse destino. Seus templos foram destruídos, seus livros queimados e seus praticantes torturados e mortos. Mas sua influência se fez sentir em várias seitas que causaram muita preocupação na Igreja durante toda a Idade Média. Podemos citar, entre outras, os bogomilos, os paulicianos, e principalmente os cátaros, que, entre os séculos XII e XIV formaram importantes grupos em vários locais da Europa.
OOS CÁTAROS
Os Cátaros floresceram em regiões da França e Alemanha no início do século IX. Em fins do século XIII haviam se tornado tão influentes, que a repressão movida contra eles pela Igreja de Roma tomou o aspecto de uma verdadeira guerra religiosa.
Nessa época a região conhecida como Languedoc - sul da França- não fazia parte do território francês. Era um conjunto de principados independentes governados por nobres feudais, entre as quais as famílias de Toulouse e Trancavel. Incluía importantes cidades como Toulose, Montpellier, Avignon, Narbonne e Marselha. Possuía a cultura mais avançada da Europa medieval. Mantinha estreitas ligações com os árabes, e seus príncipes eram largamente tolerantes com judeus e mouros, cuja população era bastante representativa. A região do Languedoc constituía uma exceção numa Europa dominada pelo barbarismo e pelo obscurantismo religioso. Foi em Lunel e Narbonne, por exemplo, que se desenvolveram as escolas dedicadas ao estudo da Cabala. Lá, o Judaísmo, o Cristianismo e o Islamismo conviviam em paz, sendo mais objeto de estudo do que de disputas. Logo, a Igreja de Roma, com sua intolerância dogmática, não podia ser mesmo admirada na região. Por outro lado, a florescente economia do Languedoc, não raro, era objeto da cobiça dos potentados do norte da França, da Alemanha e da Espanha dominada pelos reis católicos.
Ademais, o Languedoc era o principal território dos heréticos cátaros, que desafiavam a autoridade da Igreja e professavam estranhas doutrinas que negavam a divindade de Cristo, a valor da Eucaristia, os poderes da cruz, a virgindade de Maria, a doutrina da Santíssima Trindade, o mistério da Ressurreição, etc. Por isso, entre 1219 e 1244 a região foi palco de um cruel genocídio perpetrado pela Igreja de Roma, mancomunada com os senhores feudais do norte. Um exército liderado pelo líder cruzado Simão de Montfort, durante três décadas varreu o território do Langedoc, chacinando a população, queimando castelos, destruindo cidades, “matando no próprio útero materno a heresia albigense”, como havia ordenado o Papa.
Pode-se dizer que a Cruzada Albigense foi o prenúncio das guerras religiosas que três séculos mais tarde iriam ensanguentar todo o território europeu. Ela foi uma guerra destinada a matar o espírito do homem. Mas embora o homem possa ser destruído e aprisionado, o seu espírito, que é livre, sobrevive, seja para o bem ou para o mal. Ideias devem ser combatidas com outras ideias, não com violência. Todo obscurantismo imposto pela tirania só mitiga o mal que quer destruir. Faz com que ele recrudesça, se recolha, para mais tarde retornar com mais vigor. Foi o que aconteceu na Europa, dois séculos mais tarde, com a Reforma Religiosa.
O legado dos Cátaros
Os cátaros legaram á Arte Real algumas inspirações litúrgicas. Seus sacerdotes eram considerados mestres perfeitos (parfaits), que conduziam suas assembléias á maneira das reuniões maçônicas das antigas lojas operativas. Sua postura anti-dogmática tem sido constantemente invocada como análoga áquela que existe na Maçonaria moderna. Eles são constantemente citados também como antecessores, ou inspiradores dos Templários em suas tradições místicas e religiosas.
Muito provavelmente, certas posições da Igreja Católica em relação aos maçons estão, de certa forma, ligadas á uma associação que alguns setores da Igreja fazem entre a Maçonaria e seitas heréticas como a dos cátaros e dos maniqueístas, sem falar da evidente ligação que a Arte Real mantém com a tradição templarista. Embora tudo isso, hoje não seja mais que uma curiosidade histórica, não falta quem invoque essas ligações para alimentar o ranço inquisitório que ainda sobrevive em alguns nichos fundamentalistas da Igreja de Roma. Felizmente vivemos hoje numa outra época, em que pensar e expressar nossos pensamentos não constitui crime. Quem sabe, nesta era de liberdade e busca da nossa “luz interior”, os gnósticos e os nossos antigos irmãos “parfaits” e seus discípulos, os cavaleiros templários, não encontrem afinal, a sua oportunidade de desforra.
DO LIVRO "CONHECENDO A ARTE REAL", ED. MADRAS, SÃO PAULO, 2007
João Anatalino
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